segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Ministério de Socorros e Misericórdia (...por quem o vive)


Fiz uma entrevista informal com a diplomata Miriam Michael, servindo atualmente na África do Sul, sobre sua chamada para o ministério de socorros e misericórdia, então, ela me contou experiências especificas sobre seus até agora 53 anos de serviço diplomático pelo governo brasileiro. 

 A conversa começou despretensiosamente, perto da mesa de jantar. Eu perguntei:

— “Posso sentar?”

— “Pode sim, claro...” — respondeu Miriam com o sorriso sereno de quem carrega muitas histórias.

Atualmente, ela serve na África do Sul, mas sua jornada diplomática já soma mais de 50 anos. Naquele dia, falávamos sobre chamados e ministérios, mas logo a conversa tomou forma própria. Ela começou a me contar um episódio marcante.

— “Estava em Moçambique. Naquele ambiente, tudo era muito hierárquico. Eu não era diplomata de carreira, era considerada de escalão menor. Cada um tinha sua posição, sua postura, aquele clima todo. Mas, ainda assim, me respeitavam. Me respeitavam de verdade.”

Depois daquele tempo em Moçambique, Miriam voltou ao Brasil. Tirar férias, no entanto, era quase uma missão impossível.

— “Algumas pessoas se achavam especiais. Sempre davam um jeito de sair de férias antes dos outros. E nós... sempre ouvíamos: ‘Ah, você não pode agora...’. Eu nunca fui de brigar por espaço, mas por dentro ficava chateada. Falava com Deus: ‘Por que isso acontece comigo? Também preciso descansar. Sou uma das funcionárias mais antigas aqui...’”

Ela tinha férias acumuladas. A cada três meses, tinha direito a dez dias de descanso — o que vale também nas embaixadas. Mas nunca tirava. Até que, finalmente, entrou de férias numa sexta-feira.

Na segunda-feira seguinte, o mundo parou. Veio a pandemia. Os voos internacionais foram suspensos. Tudo fechou.

— “Sabe quanto tempo fiquei no Brasil? Sete meses!”

— “Foi quando a gente foi te visitar?” — perguntei.

— “Sim. Vocês foram em outro momento, quando eu já estava no apartamento funcional. Antes, tinha ficado na casa da minha irmã.”

Depois dos sete meses, voltou a Moçambique. Mas era tempo de remoção — o processo de troca de posto.

— “A minha remoção e a da minha amiga já tinham saído. Mas o embaixador pediu prorrogação só para os diplomatas. Ficamos de fora.”

A amiga ficou arrasada. Chorou. Sentia-se descartável.

— “Eles fazem assim com a gente,” — disse ela, fazendo o gesto de amassar papel — “e jogam fora. Só lembram da gente quando precisam.”

Miriam, sempre serena, a consolou:

— “É a nossa hora. A gente tem que ir.”

Pouco tempo depois, algo inesperado aconteceu. Um diplomata, que Miriam nunca tinha conhecido pessoalmente, ligou:

— “Miriam, estamos selecionando nomes para o gabinete. Você teria interesse? Temos ótimas referências suas, do tempo em que trabalhou com o ministro Celso Amorim.”

Apesar das inseguranças por conta da idade e de um problema de memória, ela aceitou. Ficou lotada no gabinete. Mas, na hora de prorrogar, o mesmo cenário se repetiu: todos tiveram a permanência estendida — menos ela e sua amiga.

Meses depois, aquele mesmo diplomata ligou de novo.

— “Miriam, a pessoa que você substituirá só sairá em abril. Isso foi em janeiro. Você já tem passagem, né?”

— “Sim, para o dia 15.”

— “Mas precisamos de você até abril. Posso pedir sua prorrogação?”

Miriam ficou em conflito. Queria aceitar, mas sentia vergonha pela amiga que não teve a mesma oportunidade. Mesmo assim, disse sim.

— “Naquela mesma tarde, chegou o telegrama: minha permanência foi prorrogada por cinco meses.”

Mais do que isso: os diplomatas tiveram um mês de prorrogação. Ela, cinco. Por quê? Porque gabinete é gabinete. Quando o gabinete fala, está falado.

— “Foi por causa do G20?” — perguntei.

— “Não... foi além disso. Eu já estava em Brasília, participando de reuniões importantes, eventos de alto nível. Pode ter sido. Mas a verdade é que foi Deus.”

Miriam continuou até maio. A amiga, com quem planejava viajar, partiu no dia 15 de janeiro. Fizeram tudo juntas: malas, compras, despedida. Mas no fim, ela ficou. Por causa de um chamado que não foi humano — foi divino.

— “Quando cheguei no gabinete, perguntei: ‘Quem ficou aqui nesse período?’ Eles responderam: ‘Ninguém’. E mesmo assim, fui prorrogada. Não fazia sentido. Mas foi Deus. Deus moveu.”

O mais curioso? A pessoa que a convidou já nem estava mais lá quando Miriam chegou.

— “Nunca o conheci pessoalmente. Mas ele foi instrumento. Porque Deus resolve. Deus agita de um lado e de outro. Ele só para quando tudo se encaixa no plano que Ele já escreveu.”

Ela cita o versículo: “Aos que me honram, eu honrarei.”

E conclui: — “Deus sempre me honra. Na entrada e na saída. Mesmo quando parece que algo não deu certo, se veio dEle... é bom. Às vezes, o que não parece bom para nós é perfeito aos olhos de Deus. Hoje eu olho para trás e penso: ‘Meu Deus, se aquilo tivesse acontecido, eu teria perdido algo muito maior’. Deus só faz coisas boas. E Ele sabe o que é melhor pra nós.”

Miriam se lembra com carinho de dois momentos marcantes que, segundo ela, valeram cada esforço da sua longa jornada. Um deles foi seu tempo no gabinete do ministro Celso Amorim. Na época, ela havia acabado de voltar do Paraguai e trabalhava nos fundos da repartição — junto com outras secretárias.

— “Eu era a secretária das secretárias”, — ela conta com humor e leveza.

Foi então que surgiu uma vaga no gabinete. Estavam procurando alguém de confiança para trabalhar com o ministro. Ninguém esperava que seria ela.

— “A Miriam? Como assim? Tinham outras candidatas: mais novas, com olhos azuis, cheias de si... Mas quem foi chamada fui eu.”

A escolha surpreendeu a muitos, mas não a Deus. Ele já tinha escrito essa página. E o então futuro embaixador, que ainda não tinha esse título, foi quem a escolheu. Ela passou a trabalhar na Secretaria-Geral, organizando agendas presidenciais, abastecendo o avião presidencial, acompanhando viagens, redigindo pautas e ajustando os bastidores de eventos de alto nível. A rotina era intensa — às vezes saía às oito da noite, outras, virava a madrugada por causa do fuso-horário das viagens internacionais.

— “Não foi minha capacitação, embora eu tenha me esforçado muito. Foi Deus quem me colocou lá. Ele sempre me surpreende.”

Outro marco em sua história foi na Suécia — um dos momentos mais inesperados e, ao mesmo tempo, mais significativos.

Na época, ela e uma colega muito próxima foram transferidas: Miriam para Moçambique, a amiga para Angola. Tinham vivido muitas coisas juntas, por isso planejavam uma festa de despedida em comum. Mas, de forma dura e silenciosa, a colega se recusou.

— “Ela disse que não queria festa comigo. Não falou diretamente, mas ficou evidente. Tinha vergonha de mim. Fiquei profundamente triste.”

O tempo passou. Miriam foi visitar a filha, Rafaela, na Tailândia. Já tinham visitado a Disney com os netos, ido à Suécia, e agora era a vez daquele país distante e exótico. Ficaram todos juntos num hotel à beira-mar.

Ao retornar, a festa já não aconteceria mais. A oportunidade passou, e o sentimento permaneceu em silêncio. A casa onde estava hospedada já estava quase vazia, malas prontas, clima de despedida no ar. Mas então, inesperadamente, o telefone tocou. Era a secretária do embaixador:

— “Miriam, o embaixador pediu que você passe no gabinete.”

— “Ah, não precisa. Já me despedi...”

— “Mas ele quer fazer isso oficialmente. Vai ficar chato se você não vier.”

Mesmo com roupa simples — um vestido laranja, presente de uma moça na Tailândia —, ela foi. Imaginava que seria uma despedida informal. Mas ao chegar ao local, viu vários militares, todos fardados.

Pensou: “Deve estar tendo alguma reunião oficial.”

Foi levada ao salão de festas. E ao abrir as portas, a surpresa: era uma grande homenagem. A festa era toda para ela. O salão decorado, todos reunidos: o embaixador, funcionários, militares. E o vestido laranja, por coincidência — ou providência —, combinava com toda a decoração.

— “Ali, fui homenageada com uma medalha, por ter colaborado com a adidância militar do Brasil na Suécia. Mesmo sem obrigação formal, ajudei com o processo seletivo, orientei candidatos, organizei tudo. Deus viu. E Ele me honrou.”

Ela nunca esqueceu: o general estava em Londres, a adidância ainda em estruturação. Como não havia militares no país naquele momento, o embaixador apontou:

— “Quem cuida disso aqui é a Miriam.”

E foi o suficiente.

— “Se aquela colega estivesse presente, talvez eu ficasse constrangida. Deus conhece meu coração. Ele sabe que fico envergonhada diante de certas coisas. Por isso, preparou tudo do jeito dEle. No tempo certo, e da forma certa, me honrou diante de todos.”

Uma outra história de um momento bem anterior a todos esses  foi quando Miriam foi transferida para o Uruguai. Vinha da Guiana, onde trabalhava no consulado. Lá, já exercia funções de vice-cônsul — mesmo sendo, oficialmente, assistente de chancelaria.

— “Um dia, o embaixador me chamou e disse: ‘Quero nomeá-la vice-cônsul’. Fiquei surpresa. Aquilo nunca tinha acontecido com alguém da minha função no Uruguai. Foi inédito.”

Antes dela, outra oficial de chancelaria tinha sido considerada para o cargo, mas não pôde assumir. O caminho se abriu, e a confiança veio do alto.

— “Fiquei oito anos nessa função. Era muita responsabilidade, documentos para assinar, plantão consular... aceitei. Mas havia quem não aceitava minha presença.”

O vice-cônsul da época ficou incomodado. Miriam percebeu.

— “Ele disse ao embaixador, na minha frente: ‘Aqui nunca houve isso. Vice-cônsul tem que ser oficial de chancelaria'

Mas o embaixador foi firme: — “A Miriam tem boas referências. Ela sabe trabalhar. Não é trabalho de gabinete, é trabalho de verdade.”

E confirmou sua nomeação.

Mesmo assim, o colega passou a persegui-la.

— “Ele me humilhava. Era como se se alimentasse disso. E eu? Fazia de conta que não percebia.”

Miriam seguiu firme, em silêncio. Com dignidade.

— “Porque o Senhor vê tudo. E no tempo certo, Ele levanta. Ele honra. Ele justifica.”

Ela encerra cada testemunho com a mesma certeza: a honra que vem de Deus é superior a qualquer promoção humana. Ela não precisa ser defendida. Ela se impõe com verdade, no tempo certo, da parte de Deus.

Nem sempre o chamado de Deus se revela de forma clara desde o início. Com Miriam, foi assim. Ela entrou no Itamaraty ainda jovem — com apenas 18 anos, em 1972 — e, seis anos depois, já estava sendo enviada ao exterior. Seu primeiro posto foi na Guiné-Bissau, aos 24 anos.

— “Comecei a trabalhar com 15 anos. E desde essa época, já ajudava em casa. Quando recebi meu primeiro salário aos 18, fui logo abrir um crediário. Mas não era para mim. Comprei roupas e sapatos para mim, para minha irmã mais nova e para meu irmão. Só depois que terminava de pagar, eu comprava algo de novo. Sempre fui assim. Sempre gostei de ajudar.”

Essa generosidade era algo natural. Herdada da mãe e do pai, cresceu sendo ensinada a repartir. Mas com o tempo, ela percebeu que havia mais do que um bom coração: havia uma missão.

Um dos primeiros sinais disso aconteceu ainda em Guiné-Bissau. Lá, uma funcionária local da embaixada — uma mulher africana que trabalhava na casa do embaixador — apareceu à sua porta desesperada. O filho dela estava coberto de feridas. O corpo inteiro tomado.

— “Eu fiquei apavorada. Uma menina de 24 anos, vendo aquilo... Lembrei que tinha uma pomada muito boa, dessas que servem pra tudo, chamada Tetra... alguma coisa. Entreguei a ela e orientei como usar.”

Aos poucos, as feridas começaram a limpar. O menino chorava de dor, mas a infecção foi cedendo. Quando a pomada acabou, a mãe voltou pedindo mais — mas já não havia. Miriam tentou enviar outra do Brasil, mas os tempos eram outros: sem DHL, sem Sedex, sem fronteiras abertas como hoje. A espera era longa. Mesmo assim, quando o novo tubo finalmente chegou, a cura foi completa.

— “O menino ficou são. Deus fez.”

Ela não sabia, mas ali, no início de tudo, já estava vivendo seu chamado: ser instrumento de socorro.

Na Guiné-Bissau, ela também testemunhou o sofrimento da população. A comida era escassa, o arroz era distribuído pelo governo, e longas filas se formavam para buscar uma saca de 50 quilos.

— “Um saco de arroz durava quase um ano pra mim. Mas eu comprava um todo mês, e doava a um funcionário local. Aquilo pra mim era o básico, era o que qualquer pessoa deveria fazer. Mas hoje eu vejo: era o início de tudo.”

Foi só anos mais tarde, no Uruguai — em Montevidéu — que Miriam entendeu, com clareza, o propósito maior de Deus.

— “O Senhor me falou: ‘O Itamaraty é só a ponte. Eu te dei esse lugar para cumprir o Meu propósito.’ E foi aí que meus olhos se abriram. Comecei a perceber as conexões, as oportunidades, as situações... Tudo se encaixava.”

Eram muitas as situações em que Deus a colocava como canal de provisão e resgate. Famílias com filhos no exterior que não tinham recursos para viajar; igrejas carentes, começando do zero, precisando de apoio; missionários sem estrutura básica. E Miriam, com discrição, entrava em cena.

— “Deus começou a me usar de forma muito específica. Eu sabia quando ajudar, como ajudar, e a quem ajudar. E isso não vinha de mim.”

Um pastor no Uruguai, que não a conhecia, confirmou essa chamada. Ele a encontrou em uma igreja distante da capital, onde ela estava apenas como visitante, sentada no fundo.

— “Ele se aproximou e falou: ‘Não sei se você já tem ou vai ter, mas Deus está mostrando que o lugar onde você trabalha é só uma ponte. O propósito é maior.’

E tudo fazia sentido. A partir dali, ela passou a servir com intencionalidade. Recebia missionários em casa, oferecia descanso a pastores esgotados, sustentava igrejas em formação com seus dízimos, e, acima de tudo, carregava uma consciência clara de que seus recursos pertenciam a Deus.

Na Albânia, foi diferente. Lá, o chamado foi itinerante.

— “Não congreguei em uma só igreja. A cada mês, o dízimo ia para um ministério diferente. Missionários brasileiros em lugares diferentes do país. Deus me dizia: ‘Ajude este agora, depois aquele.’ E eu obedecia.”

Ela entendeu, de uma vez por todas, que havia recebido um ministério de socorro e misericórdia. Que o recurso em suas mãos era parte de um propósito. E que o cargo no Itamaraty, por mais nobre que fosse, era só um meio.

— “Teve um tempo em que pensei: ‘Deus não me deu isso pra mim apenas. Eu sei que foi Ele que me colocou no Itamaraty. Eu não tinha capacidade, não estudei o suficiente. Fiz o concurso com 17 anos, sem saber que poderia ser chamada. E eles só começaram a chamar na semana em que completei 18. Se tivessem chamado antes, eu teria perdido a vaga.”

Com os olhos marejados, ela conclui:

— “Foi tudo no tempo de Deus. Ele me deu. E a partir daquele momento, tudo se aquietou dentro de mim. Eu sabia. Essa era a resposta às minhas orações.”

Deus Me Deu. E Me Ensinou a Dar.

E se veio das mãos d’Ele, por que reter? Por que guardar apenas para mim, se posso aliviar a dor de alguém? Não estou me esvaziando por completo — apenas repartindo. Dividindo o que posso, com quem precisa.

Descobri que cada gesto, mesmo os mais simples, carregava o perfume do eterno. Era como erguer um altar silencioso onde fé e prática se encontravam. Porque, para mim, generosidade nunca foi sobre abundância — foi sobre reconhecer que o que tenho já é mais do que o suficiente para compartilhar.

Com o tempo, algo dentro de mim começou a mudar. Deus, com Sua paciência, começou a me entregar não apenas recursos, mas qualificação interior. Um novo entendimento floresceu: administrar com sabedoria, discernir com sensibilidade, agir com prudência.

A prudência, que antes me parecia frieza, agora se revelava como sabedoria disfarçada. Antigamente, eu achava que, se não ajudasse, estava sendo insensível. Se não dissesse sim a todos, eu estava traindo o bem que Deus havia me dado para realizar.

E muitos perceberam isso. Tomaram minha entrega por fraqueza. Pediam — repetida, descaradamente. E eu, sem saber dizer não, me via presa. Empacada. Carregando a culpa. Mas Deus começou a me permitir sentir um tipo de angústia santa. Uma inquietação que me impedia de ceder automaticamente. E eu entendi: não era mais tempo apenas de dar — era tempo de discernir.

Alguns pedidos vinham carregados de desespero, especialmente em países da África. Mas nem toda urgência carrega verdade. E, aos poucos, o Espírito começou a me ensinar: nem todo pedido vem d’Ele.

Comecei a notar os sinais. Toda vez que alguém se aproximava com propostas que traziam peso em vez de paz, meu espírito se agitava. Uma névoa tomava o peito, e eu compreendia: Deus estava fechando o coração. E quando Ele fecha, Ele avisa.

Aprendi a orar antes de qualquer ajuda. Porque o dinheiro não é meu — é d’Ele. E eu sou apenas dispenseira. Quando meus filhos têm necessidades, eu dou. Porque sou mãe. Porque sou serva. Mas às vezes, eles se calam. E sem saber, posso estar tirando deles para dar a quem talvez nem precise tanto assim.

Foi então que compreendi: nem todo “sim” agrada a Deus. Nem todo “não” é dureza. Às vezes, é obediência. Durante anos, eu separava valores com zelo: “Isso posso gastar, isso vou guardar.” Mas bastava alguém precisar para a culpa me assaltar: “Como posso ter guardado, enquanto alguém sofre?”

Eu achava que guardar era egoísmo. Que ajudar era obrigação. Mas Deus me ensinou outro caminho: nem toda generosidade é prudente, e nem todo impulso é espiritual. Com a separação, passei a caminhar sozinha. Sem o suporte de um companheiro, precisei ser ainda mais cuidadosa. Meu marido seguiu a vida, com seus bens, imóveis, estabilidade. Eu segui com Deus — meu provedor. E entendi que guardar não é negar socorro, é se preparar para o momento certo.

Com o que guardei, comprei pequenos apartamentos. Nada luxuoso. Mas cada um com propósito. Um deles, comprei pensando na minha irmã. Estava em meu nome, mas era para ela. Sua casa já não lhe cabia mais — nem em estrutura, nem em dignidade.

Naquele tempo, até cogitei investir em aplicações. Meus colegas falavam: “Começa com pouco. Espalha. Se um cai, o outro segura.” Mas aí fui visitar minha irmã… e a realidade me quebrou por dentro. Não foi piedade. Foi compaixão. Era tempo de acolher, não de multiplicar.

Ela havia parado o tratamento médico. E algo em mim se revoltou, com doçura:

— “Não. Ela não vai parar. Não vamos deixar que desistam. Mesmo com pouco, dá.”

E eu dei. Com temor, mas com paz.

A casa não era grande — valia pouco mais de trezentos mil. Não paguei tudo de uma vez. Estava me reorganizando para a próxima transferência internacional. Tinha comprado um carro financiado, depois de um ano a pé. Reservei dinheiro para quitar mais um ano de financiamento. E ainda tinha que comprar as passagens da Isabela e da Rafaela — porque sempre levo as duas comigo nas viagens, como forma de envolver minha família no meu chamado.

Com o que sobrou, completei a casa. Não foi luxo. Foi obediência. Eu só queria ajudar. Servir a Deus com o que tenho. Mas a cobrança veio. Não da consciência — essa, graças a Deus, está em paz. Mas dos de fora. Da própria família. Sobrinhos que se afastaram porque não atendi seus pedidos. Gente que só aparece para pedir:

— “Tia, empresta 10 mil?”

E eu aprendi: nem todo pedido é necessidade. Nem toda ajuda é socorro.

Não quero viver com dificuldade, mas também não quero sustentar fantasias alheias. Tem gente que ganha mais do que eu e nunca é cobrada. Mas porque trabalho fora, moro em outro país, viajo de avião… acham que tenho obrigação. Acham que servir a Deus é sinônimo de abundância sem luta.

Mas não sabem o preço de amar com discernimento. Essa é minha dor. Minha luta silenciosa. Sempre acreditei que Deus me deu uma oportunidade rara — dessas que Ele não entrega a qualquer um. Gente com três, quatro faculdades… e ainda assim, sem portas abertas como as que Ele me confiou.

Não foi mérito. Foi graça. Um chamado.

A família aplaudia. Admirava. Mas junto com o aplauso, veio o abuso. Não físico, mas emocional, financeiro, espiritual. Como quem olha um poço e acha que nunca vai secar. Fui confundida com uma conta bancária infinita. E ali, nesse amor que queria ser remédio, travaram-se minhas maiores lutas. Lutas com os filhos. Com os que eu mais amava. Com os que criei.

Foi só quando minha irmã — a que hoje descansa com o Senhor — abriu o coração e revelou o que vivia, que eu entendi: Nem todo silêncio é santidade. Nem toda ajuda é honra. Nem toda aprovação é apoio. Mesmo assim, continuo crendo: Deus me deu essa missão. Mas agora sei… ela vem com espada e sabedoria.

A generosidade não é um ato isolado — é um chamado. Um dom espiritual. Um estilo de vida. Ao longo dos anos, desde os tempos de juventude até as experiências em lugares distantes como Singapura, Suécia, Cuba, Guiana Inglesa, Cazaquistão, Guiné-Bissau, Uruguai, Albânia e outros, o ministério do socorro e da misericórdia se revelou como a expressão mais concreta do amor de Deus na prática diária.

Como Paulo ensinou em Atos 20:35: “Mais bem-aventurado é dar do que receber.” Mas dar com sabedoria. Com discernimento. Com oração.

Afinal, o dom da misericórdia precisa caminhar lado a lado com a prudência — senão vira dívida, confusão e desgaste. O verdadeiro socorro é aquele que vem da parte de Deus, no tempo de Deus, com os recursos de Deus.

Que essa história inspire outros a viverem com coragem, humildade e olhos abertos para a necessidade real — a que Deus mesmo aponta. Porque quem serve com amor e discernimento, transforma o mundo à sua volta — um gesto de cada vez.

(Minha adaptação para minha conversa com Miriam Michael, Diplomata brasileira) 

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