quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Corações Vazios, Mãos Fechadas: A Raiz Oculta da Insatisfação (L11)


Ganância, avareza, incômodo com o uso dos próprios recursos por outros, esconder comida, excesso de controle sobre bens e gastos — têm explicações profundas na psicanálise. Vamos analisar esses traços segundo diferentes perspectivas psicanalíticas, especialmente as freudianas e pós-freudianas:

1. Freud e a Fase Anal: A origem da avareza

Na teoria psicossexual de Sigmund Freud, a avareza está ligada à fase anal do desenvolvimento infantil (entre 1 e 3 anos), quando a criança está aprendendo a controlar os esfíncteres e lida com as primeiras experiências de autonomia e retenção.

Fixação na fase anal-retentiva: Quando há excesso de rigidez dos pais no controle da higiene (punições, exigências, críticas), a criança pode desenvolver um padrão anal-retentivo.

Isso se manifesta na vida adulta como:

Avareza (retenção de bens, dinheiro, comida)

Controle excessivo

Ordem rígida

Dificuldade em compartilhar

Medo de perder ou ser invadido

Esses indivíduos têm prazer inconsciente em reter — seja dinheiro, alimentos ou até emoções.

Esconder comida, por exemplo, pode simbolizar medo da escassez, desejo inconsciente de controle ou até de punição do outro (“não merece minha comida”).

2. Ganância como defesa contra o vazio interno

Na psicanálise relacional e na psicologia do self (como em Heinz Kohut), a ganância pode ser vista como uma defesa contra um sentimento profundo de vazio interior, baixa autoestima ou falta de estrutura emocional sólida.

A pessoa acumula bens, alimentos ou dinheiro como substitutos inconscientes para suprir:

Falta de afeto

Sensação de insegurança

Ausência de amor ou reconhecimento

Assim, o "ter" compensa o "não ser".

Por isso, incomoda tanto ver os outros usando ou gastando o que é "dela". No fundo, ela sente que está perdendo a si mesma, não apenas um objeto.

3. Trauma, escassez e insegurança primária

Muitos comportamentos avarentos ou gananciosos têm origem em experiências precoces de escassez ou negligência.

Crianças que passaram por:

Fome

Falta de cuidado

Abandono emocional

Desenvolvem crenças inconscientes como:

“Nada é garantido.”

“Se eu não guardar, vou ficar sem.”

“Não posso confiar que os outros vão cuidar de mim.”

Resultado: dificuldade em compartilhar, medo de dividir e sensação de ameaça quando os outros usufruem do que é seu.

4. Avareza como resistência ao prazer (princípio do prazer vs. princípio da realidade)

Freud também propõe que o ser humano vive tensionado entre o princípio do prazer (desejo de satisfação imediata) e o princípio da realidade (necessidade de controle e adiar gratificações).

O avarento reprime o prazer como forma de manter controle e evitar ansiedade.

Gastar, dar ou dividir pode ativar o superego severo (voz interior crítica), gerando culpa.

Reflexão integradora: Avareza na alma e na espiritualidade

Mesmo fora da psicanálise, a avareza é descrita como uma forma de idolatria nas Escrituras:

“Porque o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males...” (1 Timóteo 6:10)

“Guardai-vos de toda e qualquer avareza; porque a vida de um homem não consiste na abundância dos bens que ele possui.” (Lucas 12:15)

A pessoa avarenta não confia. Nem no outro, nem em Deus. Seu mundo interior está baseado no medo, não na confiança. Por isso, retém. Mas onde há confiança, há generosidade.

O que pode estar por trás da avareza?

Uma leitura psicanalítica dos comportamentos que revelam ganância, controle e retenção

1. Esconder comida

Esse comportamento, embora pareça pequeno ou até cômico em algumas situações, pode revelar traumas antigos relacionados à escassez. Pessoas que passaram por períodos de privação — seja material ou emocional — podem desenvolver um padrão de retenção, como uma forma de garantir segurança.

Na psicanálise, isso também se associa à fixação na fase anal-retentiva (descrita por Freud), onde o prazer está em guardar, reter, controlar. Esconder comida, então, se torna um gesto inconsciente de defesa: "se eu dividir, posso ficar sem". Em alguns casos, há até um prazer oculto em possuir algo que o outro não tem acesso.

2. Incomodar-se com o uso de seus bens por outras pessoas

Esse incômodo constante diante do uso ou do desgaste dos próprios objetos, espaços ou recursos revela um forte desejo de controle e preservação da identidade.

Na raiz disso pode estar uma identidade emocional frágil, que se apoia excessivamente no que possui para se sentir segura. O uso de suas coisas por outras pessoas pode ser interpretado, inconscientemente, como uma ameaça à própria integridade: "se tocam no que é meu, tocam no que eu sou".

É uma tentativa inconsciente de proteger o que ainda não foi plenamente estruturado internamente.

3. Ganância por vantagens e benefícios

A busca insaciável por vantagens — sejam elas materiais, sociais ou afetivas — geralmente é motivada por um vazio interior. Em vez de uma verdadeira satisfação, o indivíduo tenta preencher suas lacunas emocionais com acúmulo: de dinheiro, de oportunidades, de controle.

Na psicanálise contemporânea (como nas teorias do self), entende-se que essa é uma tentativa de reparar uma carência afetiva primária: a pessoa não se sente plenamente amada ou validada, então passa a usar conquistas externas como muletas internas. O problema? Nada é suficiente.

A ganância, nesse caso, é um grito silencioso: “me faltou amor, então vou buscar tudo que puder para provar que tenho valor”.

4. Dificuldade de compartilhar

Pessoas que têm extrema dificuldade em compartilhar — seja tempo, recursos ou atenção — costumam carregar dentro de si marcas profundas de insegurança e medo da perda.

Esse padrão de comportamento também pode estar ligado à fixação anal da infância, onde a criança aprendeu que dar é perigoso, que ceder é se expor.

A culpa inconsciente também pode entrar em cena: o sentimento de que, se eu der demais, posso ser punido depois, ou não terei mais para mim.

O impulso de reter é, muitas vezes, uma forma de se proteger de frustrações passadas ou da sensação de impotência diante da vida.

A avareza não é apenas um "defeito de caráter" — é um sintoma emocional e psíquico de algo mais profundo: insegurança, traumas não resolvidos, estruturas de defesa e até distorções no senso de identidade.

Quando compreendemos o que está por trás do comportamento, podemos lidar com ele com mais compaixão — mas também com mais responsabilidade.

E na perspectiva cristã, a cura começa na confiança:

"O Senhor é o meu pastor; nada me faltará." (Salmo 23:1)

A confiança na provisão de Deus e na própria identidade como filho(a) amado(a) cura a necessidade de reter, esconder e controlar. Porque quem se sente plenamente suprido não precisa acumular — pode compartilhar.

A união entre o Evangelho e a psicanálise pode ser profundamente transformadora, pois ambas abordam a condição humana — uma do ponto de vista espiritual e redentor, e a outra do ponto de vista emocional e inconsciente.

Enquanto o Evangelho oferece identidade, perdão, graça e restauração, a psicanálise oferece linguagem, compreensão e consciência das raízes internas do sofrimento. Quando trabalhadas juntas (com discernimento), elas não competem — se complementam.

A seguir, apresento as melhores formas de encontrar cura emocional, espiritual e relacional através dessa integração:

1. Nomear para transformar: a psicanálise oferece linguagem, o Evangelho, sentido

A psicanálise ajuda a identificar as causas ocultas do sofrimento: traumas, defesas inconscientes, repetições emocionais, feridas familiares. Ela dá nome ao que está escondido — e nomear é o primeiro passo da cura.

“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” (João 8:32)

Essa verdade não é apenas teológica — é existencial. A verdade sobre mim mesmo também liberta. Ao dar nome ao que sinto, à dor que carrego, posso então entregá-la a Cristo.

2. Reconhecer as raízes, perdoar com consciência

A psicanálise nos ajuda a entender de onde vêm certos comportamentos, medos ou repetições destrutivas. Mas só o Evangelho pode nos capacitar a perdoar, inclusive o que a razão humana diria que é imperdoável.

“Perdoai, e sereis perdoados.” (Lucas 6:37)

A cura emocional plena exige perdão — mas não um perdão superficial. É um perdão que reconhece a dor, que nomeia a ofensa, mas escolhe liberar o outro e a si mesmo.

Psicanálise: “isso aconteceu com você — e te feriu dessa forma.”

Evangelho: “mesmo com essa ferida, você é amado e pode perdoar.”

3. Reestruturar a identidade: do falso self ao novo homem

A psicanálise fala do “falso self” — uma identidade construída para agradar, esconder ou se defender. Muitas pessoas vivem assim: adaptadas, desconectadas de si mesmas, presas a máscaras.

O Evangelho propõe algo ainda mais radical: uma nova identidade em Cristo.

“E vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade.” (Efésios 4:24)

A psicanálise nos ajuda a desmontar a estrutura do falso eu. O Evangelho, então, nos oferece um novo Eu, firmado no amor do Pai. A reconstrução não é apenas interna — é espiritual.

4. Lidar com a culpa e o superego religioso

A psicanálise trata do superego — a voz crítica interna que cobra perfeição, castiga erros e sabota a liberdade. Muitas pessoas confundem essa voz com a voz de Deus. Acham que Deus está sempre desapontado, sempre exigindo mais.

O Evangelho oferece graça.

“Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus.” (Romanos 8:1)

A cura passa por diferenciar o superego acusador da voz do Espírito Santo, que corrige com amor e não com humilhação.

5. Substituir defesas por confiança

A psicanálise mostra nossas defesas: negação, racionalização, controle, fuga, projeção. Todas essas barreiras foram construídas para nos proteger da dor, mas hoje nos impedem de crescer.

O Evangelho nos chama a confiar.

“Entrega o teu caminho ao Senhor, confia nele, e o mais ele fará.” (Salmo 37:5)

A fé nos permite soltar o controle, porque sabemos que estamos seguros nas mãos de Deus. Não precisamos mais nos esconder atrás de mecanismos emocionais — podemos viver com liberdade.

6. Receber cuidado humano e intervenção divina

Muitas vezes, o processo de cura envolve falar, elaborar, ser ouvido. A psicanálise oferece esse espaço sagrado de escuta, onde o inconsciente se revela. Mas o Evangelho traz a presença de Deus nesse processo.

“Confessai, pois, os vossos pecados uns aos outros e orai uns pelos outros, para serdes curados.”   (Tiago 5:16)

O falar que cura é tanto terapêutico quanto espiritual. Ambos têm seu lugar. Um terapeuta sério pode nos ajudar a reorganizar a alma; o Espírito Santo nos restaura de dentro para fora.

A avareza emocional ou material — como esconder comida, não gostar de dividir, buscar vantagem o tempo todo — pode estar profundamente conectada a baixa autoestima, ansiedade crônica e a essa incapacidade recorrente de concluir o que se começa. Vou explicar como esses pontos se relacionam, sob uma lente psicanalítica e espiritual:

1. Baixa autoestima: quando o valor próprio está comprometido

Uma pessoa com baixa autoestima frequentemente sente que não é suficiente por si só — então, tenta compensar por meio do controle, da posse ou do mérito externo. Ela se apega ao que tem porque não se sente segura sendo quem é.

Na prática, isso pode se manifestar como:

Medo de partilhar, porque "posso ficar sem"

Apego exagerado a objetos, dinheiro ou comida como fonte de segurança

Dificuldade em confiar que será cuidada ou amada sem “merecer”

"Se eu dou, fico sem. E se fico sem, ninguém vai me socorrer."

No Evangelho, Jesus restaura a identidade:

“Vocês valem mais do que muitos pardais” (Mateus 10:31)

2. Ansiedade: medo do futuro, da escassez e da perda

A ansiedade gera uma sensação de ameaça constante, mesmo quando tudo parece bem. O indivíduo ansioso tende a:

Guardar demais

Controlar excessivamente

Se irritar com desperdício ou com o uso de seus recursos

Essa ansiedade também se traduz em acúmulo (material ou emocional), o que pode parecer “ganância”, mas na verdade é medo de faltar. É como se tudo o que a pessoa faz fosse tentando garantir que não vai sofrer de novo.

A avareza pode ser um sintoma de hipervigilância emocional.

“Não vos inquieteis com o dia de amanhã…” (Mateus 6:34)

3. Incapacidade de terminar o que começa: sabotagem e medo de frustração

Isso também pode estar ligado à mesma raiz:

Baixa autoestima gera medo do fracasso: então a pessoa começa, mas abandona antes de concluir (para não lidar com a frustração ou com a exposição ao erro).

Ansiedade gera paralisia ou dispersão: o excesso de pensamentos e medos impede o foco e o progresso.

Avareza emocional gera dificuldade de entrega e confiança: por isso, a pessoa não se entrega totalmente a um processo.

Ou seja: a mesma alma que guarda demais para se proteger, também evita concluir o que começou para não se ferir.

Deus vos abençoe

Leonardo Lima Ribeiro

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

A ingratidão é um parasita emocional e espiritual (L11)

 


A Insatisfação e a Ingratidão: A Raiz de um Coração Corrosivo

A insatisfação, quando constante, vai muito além de um mero incômodo com as circunstâncias da vida. Ela se torna um sintoma de uma enfermidade espiritual mais profunda: a ingratidão. Um coração ingrato não consegue reconhecer o valor do que já tem, não honra as pessoas ao seu redor e não percebe as oportunidades que já lhe foram concedidas. Esse tipo de postura interna distorce a realidade e contamina os relacionamentos.

1. A ingratidão cega o coração

Quem vive insatisfeito geralmente olha para a vida com as lentes da escassez. Ainda que possua bênçãos e conquistas, sua visão estará sempre voltada para o que falta, nunca para o que já foi recebido.

"Em tudo, dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco."                         (1 Tessalonicenses 5:18)

Esse versículo não diz para dar graças por tudo, mas em tudo — ou seja, mesmo nas dificuldades, há algo que podemos agradecer. Quando a gratidão é cultivada, ela muda a perspectiva: o que parecia pouco se torna suficiente; o que parecia comum se revela um milagre.

2. A insatisfação alimenta o uso utilitário das pessoas

Quando uma pessoa está cronicamente insatisfeita, ela começa a usar os outros como instrumentos para suprir sua carência ou ambição. Pessoas não são mais vistas como indivíduos com valor próprio, mas como meios para um fim. Isso é perigosamente contrário ao coração de Deus, que nos chama para o amor sacrificial.

"O amor é paciente, é benigno; o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente, não busca os seus interesses..." (1 Coríntios 13:4-5)

Quem ama de verdade não explora. Quem está cheio de gratidão e contentamento sabe que o outro não existe para preencher seus vazios, mas para ser honrado como imagem de Deus.

3. A insatisfação abre espaço para a comparação e a inveja

Quando o coração está cheio de ingratidão, ele facilmente se volta para a comparação — e dela nasce a inveja, que corrói como ferrugem. Caim se tornou assassino porque não soube lidar com a insatisfação diante da oferta aceita de Abel (Gênesis 4:3-8). Saul perseguiu Davi porque não suportou ver o reconhecimento que o jovem recebeu (1 Samuel 18:6-9).

"Porque onde há inveja e sentimento faccioso, aí há confusão e toda obra má." (Tiago 3:16)

A insatisfação constante abre brechas emocionais e espirituais. Ela cria um ambiente propício para o autoengano, para o ressentimento e até para escolhas destrutivas, muitas vezes disfarçadas de busca por crescimento.

4. A gratidão é a cura para a distorção da alma

Gratidão não é um sentimento — é uma disciplina do coração. Não se trata de esperar que tudo esteja perfeito para agradecer, mas de exercitar o contentamento. O apóstolo Paulo nos dá um exemplo poderoso:

"Aprendi a viver contente em toda e qualquer situação. Sei o que é passar necessidade e sei o que é ter fartura. Aprendi o segredo de viver contente em toda e qualquer situação..." (Filipenses 4:11-12)

Essa postura não nasce do que temos, mas de quem somos em Deus. O contentamento não é passividade, mas maturidade espiritual. Não impede o progresso, mas o orienta com equilíbrio.

Um coração satisfeito honra a Deus e valoriza o próximo

A insatisfação contínua, quando não tratada, pode virar amargura, manipulação e idolatria — idolatria das próprias vontades, planos e desejos. Mas a gratidão restaura a visão. Ela nos ensina a ver o que Deus já fez, a valorizar quem caminha conosco e a esperar com fé o que ainda virá.

"Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e não te esqueças de nenhum de seus benefícios." (Salmo 103:2)

Essa é a chave: não esquecer. Quando lembramos dos benefícios do Senhor, o nosso coração se enche de louvor, e o peso da insatisfação perde força. Um coração grato não usa os outros como ferramentas, mas os vê como presentes.

Insatisfação, Ingratidão e o Amor Condicional: Quando o Outro Vira um Objeto

A insatisfação, quando nutrida pela ingratidão, não apenas corrói o interior — ela cria uma sede insaciável por mais: mais atenção, mais validação, mais vantagens. E nesse ciclo vicioso, as pessoas deixam de ser vistas como relacionamentos a serem cultivados e passam a ser tratadas como recursos a serem explorados.

1. Quando os relacionamentos se tornam utilitários

Nesse padrão distorcido, os relacionamentos funcionam como contratos unilaterais: só permanecem enquanto houver retorno. Se o outro deixa de “servir” aos meus desejos — de me ouvir, de me apoiar, de me admirar —, é descartado. É como se a pessoa só tivesse valor enquanto alimenta o meu ego, os meus planos ou a minha carência.

"Nos últimos dias sobrevirão tempos difíceis... pois os homens serão egoístas, avarentos, presunçosos, arrogantes, blasfemadores... ingratos, profanos..." (2 Timóteo 3:1-2)

Essa lista de comportamentos dos "últimos dias" começa com o egoísmo e logo aponta para a ingratidão. Onde há um coração ingrato, haverá também um amor superficial, condicional e manipulador.

2. A lógica perversa do "uso e descarte"

Esse tipo de postura não só fere o outro — ela fere a si mesma. O indivíduo que vive para receber nunca amadurece emocional ou espiritualmente. Ele está sempre em busca de preenchimento externo para um vazio interno.

"Todos buscam os seus próprios interesses, não os de Jesus Cristo." (Filipenses 2:21)

Essa é a realidade de quem ainda não teve o coração transformado pelo amor sacrificial de Cristo: vive centrado em si, e não no que glorifica a Deus. E onde o amor é condicional, o abandono se torna uma ferramenta. Relacionamentos viram moedas de troca.

3. Amor maduro não busca o próprio interesse

No Reino de Deus, o amor é radicalmente diferente da lógica do mundo. Não é interesseiro, não é manipulador, não é descartável. Ele não se sustenta no que o outro pode oferecer, mas no valor que Deus deu a cada vida.

"O amor... não busca os seus próprios interesses..." (1 Coríntios 13:5)

Isso não significa se anular ou aceitar abusos. Significa amar de forma madura, com um coração grato que reconhece o valor do outro mesmo quando ele não me beneficia diretamente.

4. A ingratidão cria idolatria relacional

Quando a pessoa não tem gratidão a Deus, ela acaba tentando extrair dos outros o que só o Pai pode dar: identidade, valor, aceitação, alegria. E isso é idolatria emocional. E como todo ídolo, o outro acaba frustrando expectativas irreais — e, por isso, é descartado.

"Maldito o homem que confia no homem, que faz da carne mortal o seu braço e aparta o seu coração do Senhor!" (Jeremias 17:5)

A ingratidão nos afasta da fonte verdadeira. E, longe de Deus, exigimos do outro o que nem nós conseguimos sustentar em nós mesmos: perfeição, constância e suprimento emocional completo.

Gratidão cura a sede e purifica os relacionamentos

A única forma de quebrar esse ciclo é permitir que a gratidão tome o lugar da carência, e que o amor verdadeiro — aquele que flui de Deus — substitua a lógica do uso e descarte. Pessoas não são ferramentas. Elas são espelhos da graça de Deus em nossas vidas.

"Nós amamos porque Ele nos amou primeiro." (1 João 4:19)

Quando somos gratos por sermos amados por Deus, começamos a amar com mais liberdade, mais verdade, mais entrega. E, assim, a sede de "mais" dá lugar à satisfação de viver em comunhão com propósito.

Quando o Outro Vira Função: A Fragilidade das Conexões Sem Gratidão

A mentalidade utilitarista — aquela que enxerga o outro apenas pelo que ele pode oferecer — torna os vínculos humanos frágeis, descartáveis e superficiais. Nessa lógica, os relacionamentos deixam de ser espaços de entrega e construção mútua, e passam a funcionar como transações: "eu me conecto com você enquanto me for útil".

1. Quem é ingrato não vê pessoas — vê funções

A ingratidão rouba a capacidade de perceber o valor essencial do outro. Pessoas deixam de ser tratadas como imagem e semelhança de Deus, e passam a ser vistas como peças de um tabuleiro pessoal. Não importa a história, os sentimentos ou a dignidade do outro — só importa se ainda serve.

"Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem mal; que fazem da escuridade luz e da luz escuridade..."(Isaías 5:20)

Essa inversão de valores é o que acontece quando a ingratidão governa. O que deveria ser honrado — o ser humano como criação divina — é desvalorizado. E o que deveria ser combatido — o egoísmo, o interesse — é normalizado.

2. A ausência de reciprocidade revela o coração endurecido

Onde há apenas conveniência, não há amor. O amor bíblico é fundado na entrega, no compromisso, na permanência. Mas quem vive a partir do interesse pessoal raramente experimenta a profundidade de um relacionamento recíproco — porque só sabe sugar, não semear.

"Não ameis de palavras nem de língua, mas por obras e em verdade." (1 João 3:18)

Amor verdadeiro é ação, não conveniência. É investimento, não uso. Onde há gratidão, há disposição em reconhecer, valorizar e retribuir. Mas o ingrato se recusa a dar — ele apenas cobra, exige e consome.

3. A sede de quem não sabe agradecer é insaciável

A tragédia de quem vive assim é que, mesmo quando consegue o que deseja, continua vazio. Nada satisfaz. Porque aquilo que preenche um coração não é o acúmulo de benefícios, mas a consciência de que tudo o que temos é graça. Onde falta gratidão, sobra frustração.

"O coração insaciável se farta de si mesmo..." (Provérbios 18:1 - paráfrase)

"O homem cobiçoso levanta contendas, mas o que confia no Senhor prosperará." (Provérbios 28:25)

Essa busca incessante por mais é como um poço sem fundo. Não importa o quanto receba, a alma ingrata sempre sentirá que falta algo — porque não aprendeu a reconhecer e valorizar o que já tem.

4. Gratidão aprofunda e sustenta os vínculos

O que sustenta um relacionamento ao longo do tempo não são os benefícios mútuos, mas o reconhecimento do valor do outro — mesmo quando não está me servindo, mesmo quando falha, mesmo quando me confronta. A gratidão enxerga além da função: vê a essência.

"Sede agradecidos." (Colossenses 3:15b)

"Honrai a todos." (1 Pedro 2:17a)

Honrar e agradecer são expressões de maturidade espiritual. Um coração grato não transforma pessoas em degraus, mas em parceiros de jornada.

A Profundidade que Só a Gratidão Permite

Nada é suficiente para quem não sabe agradecer. E ninguém permanece ao lado de quem só sabe consumir. A mentalidade utilitarista não apenas destrói os outros — ela isola, endurece e empobrece o próprio coração.

Mas a gratidão é um antídoto. Ela nos devolve a visão correta: vemos as pessoas como presentes, não como ferramentas. Vemos as conexões como dádivas, não como contratos. Vemos a vida como graça, não como dívida.

"O que é que você tem que não tenha recebido? E, se o recebeu, por que se orgulha como se assim não fosse?" (1 Coríntios 4:7b – NVI)

Esse versículo é o ponto final: tudo é dádiva. Quando entendemos isso, paramos de exigir, de usar, de comparar — e começamos a agradecer, a servir, a honrar.

Maturidade Emocional: Gratidão, Honra e Relacionamentos que Edificam

A verdadeira maturidade emocional não se mede pelo que alguém conquista ou sabe, mas pela forma como ela valoriza o que tem, honra quem está ao seu lado e cultiva relacionamentos saudáveis, profundos e recíprocos. É fácil aplaudir o que nos favorece. Difícil é permanecer leal quando o outro não nos oferece nada em troca — e ainda assim reconhecer seu valor.

1. Honrar pessoas pelo que são — não só pelo que oferecem

Pessoas não são ferramentas. São almas eternas com valor intrínseco. Maturidade emocional é olhar para o outro e enxergar propósito, identidade e dignidade — mesmo quando ele não está suprindo minhas necessidades ou expectativas.

"Nada façais por partidarismo ou vanglória, mas por humildade, considerando cada um os outros superiores a si mesmo." (Filipenses 2:3)

Esse texto nos desafia: não se trata apenas de tolerar o outro, mas de honrá-lo acima de nós mesmos, mesmo quando ele não tem nada a nos oferecer. Isso exige humildade e um coração grato.

2. Relacionamentos profundos se constroem com respeito, gratidão e entrega

Em um mundo onde os vínculos estão cada vez mais frágeis, a maturidade se revela na capacidade de manter relacionamentos sustentados por respeito mútuo, gratidão sincera e entrega verdadeira. Isso só é possível quando deixamos de ver o outro como um meio e passamos a vê-lo como um presente.

"Sede uns para com os outros benignos, misericordiosos, perdoando-vos uns aos outros, como também Deus vos perdoou em Cristo." (Efésios 4:32)

Relacionamentos saudáveis exigem graça, não cobrança. Entrega, não controle. Perdão, não exigência.

3. Quem vive insatisfeito por dentro, explora por fora

A insatisfação interior muitas vezes gera um comportamento explorador. Quando alguém está cheio de carência e vazio de gratidão, tenta sugar dos outros aquilo que lhe falta por dentro: afirmação, afeto, atenção, valor. E quando o outro não consegue mais suprir, é descartado.

"Da abundância do coração fala a boca." (Mateus 12:34b)

Ou seja, o que sai da nossa boca e da nossa conduta revela o que está cheio dentro de nós. Um coração insatisfeito se manifesta em atitudes manipuladoras e interesseiras. Mas um coração pleno de gratidão transborda serviço, honra e generosidade.

4. A gratidão nos ensina a valorizar até o que não pedimos

Maturidade não é apenas agradecer quando tudo vai bem. É saber reconhecer o valor de situações e pessoas que Deus colocou em nossa vida, mesmo quando elas não foram solicitadas ou esperadas. Às vezes, os maiores tesouros chegam disfarçados de interrupções, processos e até conflitos.

"Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus..." (Romanos 8:28a)

Quem cultiva gratidão aprende a ver sentido até no que não escolheu — e cresce em tudo que vive, porque sabe que Deus está presente nos detalhes.

Conclusão: Gratidão não é resposta ao que temos — é atitude diante de quem somos

A pessoa madura emocionalmente não vive de exigências, mas de gratidão. Não se relaciona por interesse, mas por honra. E não vive à caça de reconhecimento, porque sabe quem é e já encontrou satisfação em Deus.

"Grande fonte de lucro é a piedade com contentamento." (1 Timóteo 6:6)

Essa é a fórmula da verdadeira prosperidade emocional: contentamento com gratidão, honra com entrega, relacionamentos com propósito.

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Ministério de Socorros e Misericórdia (...por quem o vive)


Fiz uma entrevista informal com a diplomata Miriam Michael, servindo atualmente na África do Sul, sobre sua chamada para o ministério de socorros e misericórdia, então, ela me contou experiências especificas sobre seus até agora 53 anos de serviço diplomático pelo governo brasileiro. 

 A conversa começou despretensiosamente, perto da mesa de jantar. Eu perguntei:

— “Posso sentar?”

— “Pode sim, claro...” — respondeu Miriam com o sorriso sereno de quem carrega muitas histórias.

Atualmente, ela serve na África do Sul, mas sua jornada diplomática já soma mais de 50 anos. Naquele dia, falávamos sobre chamados e ministérios, mas logo a conversa tomou forma própria. Ela começou a me contar um episódio marcante.

— “Estava em Moçambique. Naquele ambiente, tudo era muito hierárquico. Eu não era diplomata de carreira, era considerada de escalão menor. Cada um tinha sua posição, sua postura, aquele clima todo. Mas, ainda assim, me respeitavam. Me respeitavam de verdade.”

Depois daquele tempo em Moçambique, Miriam voltou ao Brasil. Tirar férias, no entanto, era quase uma missão impossível.

— “Algumas pessoas se achavam especiais. Sempre davam um jeito de sair de férias antes dos outros. E nós... sempre ouvíamos: ‘Ah, você não pode agora...’. Eu nunca fui de brigar por espaço, mas por dentro ficava chateada. Falava com Deus: ‘Por que isso acontece comigo? Também preciso descansar. Sou uma das funcionárias mais antigas aqui...’”

Ela tinha férias acumuladas. A cada três meses, tinha direito a dez dias de descanso — o que vale também nas embaixadas. Mas nunca tirava. Até que, finalmente, entrou de férias numa sexta-feira.

Na segunda-feira seguinte, o mundo parou. Veio a pandemia. Os voos internacionais foram suspensos. Tudo fechou.

— “Sabe quanto tempo fiquei no Brasil? Sete meses!”

— “Foi quando a gente foi te visitar?” — perguntei.

— “Sim. Vocês foram em outro momento, quando eu já estava no apartamento funcional. Antes, tinha ficado na casa da minha irmã.”

Depois dos sete meses, voltou a Moçambique. Mas era tempo de remoção — o processo de troca de posto.

— “A minha remoção e a da minha amiga já tinham saído. Mas o embaixador pediu prorrogação só para os diplomatas. Ficamos de fora.”

A amiga ficou arrasada. Chorou. Sentia-se descartável.

— “Eles fazem assim com a gente,” — disse ela, fazendo o gesto de amassar papel — “e jogam fora. Só lembram da gente quando precisam.”

Miriam, sempre serena, a consolou:

— “É a nossa hora. A gente tem que ir.”

Pouco tempo depois, algo inesperado aconteceu. Um diplomata, que Miriam nunca tinha conhecido pessoalmente, ligou:

— “Miriam, estamos selecionando nomes para o gabinete. Você teria interesse? Temos ótimas referências suas, do tempo em que trabalhou com o ministro Celso Amorim.”

Apesar das inseguranças por conta da idade e de um problema de memória, ela aceitou. Ficou lotada no gabinete. Mas, na hora de prorrogar, o mesmo cenário se repetiu: todos tiveram a permanência estendida — menos ela e sua amiga.

Meses depois, aquele mesmo diplomata ligou de novo.

— “Miriam, a pessoa que você substituirá só sairá em abril. Isso foi em janeiro. Você já tem passagem, né?”

— “Sim, para o dia 15.”

— “Mas precisamos de você até abril. Posso pedir sua prorrogação?”

Miriam ficou em conflito. Queria aceitar, mas sentia vergonha pela amiga que não teve a mesma oportunidade. Mesmo assim, disse sim.

— “Naquela mesma tarde, chegou o telegrama: minha permanência foi prorrogada por cinco meses.”

Mais do que isso: os diplomatas tiveram um mês de prorrogação. Ela, cinco. Por quê? Porque gabinete é gabinete. Quando o gabinete fala, está falado.

— “Foi por causa do G20?” — perguntei.

— “Não... foi além disso. Eu já estava em Brasília, participando de reuniões importantes, eventos de alto nível. Pode ter sido. Mas a verdade é que foi Deus.”

Miriam continuou até maio. A amiga, com quem planejava viajar, partiu no dia 15 de janeiro. Fizeram tudo juntas: malas, compras, despedida. Mas no fim, ela ficou. Por causa de um chamado que não foi humano — foi divino.

— “Quando cheguei no gabinete, perguntei: ‘Quem ficou aqui nesse período?’ Eles responderam: ‘Ninguém’. E mesmo assim, fui prorrogada. Não fazia sentido. Mas foi Deus. Deus moveu.”

O mais curioso? A pessoa que a convidou já nem estava mais lá quando Miriam chegou.

— “Nunca o conheci pessoalmente. Mas ele foi instrumento. Porque Deus resolve. Deus agita de um lado e de outro. Ele só para quando tudo se encaixa no plano que Ele já escreveu.”

Ela cita o versículo: “Aos que me honram, eu honrarei.”

E conclui: — “Deus sempre me honra. Na entrada e na saída. Mesmo quando parece que algo não deu certo, se veio dEle... é bom. Às vezes, o que não parece bom para nós é perfeito aos olhos de Deus. Hoje eu olho para trás e penso: ‘Meu Deus, se aquilo tivesse acontecido, eu teria perdido algo muito maior’. Deus só faz coisas boas. E Ele sabe o que é melhor pra nós.”

Miriam se lembra com carinho de dois momentos marcantes que, segundo ela, valeram cada esforço da sua longa jornada. Um deles foi seu tempo no gabinete do ministro Celso Amorim. Na época, ela havia acabado de voltar do Paraguai e trabalhava nos fundos da repartição — junto com outras secretárias.

— “Eu era a secretária das secretárias”, — ela conta com humor e leveza.

Foi então que surgiu uma vaga no gabinete. Estavam procurando alguém de confiança para trabalhar com o ministro. Ninguém esperava que seria ela.

— “A Miriam? Como assim? Tinham outras candidatas: mais novas, com olhos azuis, cheias de si... Mas quem foi chamada fui eu.”

A escolha surpreendeu a muitos, mas não a Deus. Ele já tinha escrito essa página. E o então futuro embaixador, que ainda não tinha esse título, foi quem a escolheu. Ela passou a trabalhar na Secretaria-Geral, organizando agendas presidenciais, abastecendo o avião presidencial, acompanhando viagens, redigindo pautas e ajustando os bastidores de eventos de alto nível. A rotina era intensa — às vezes saía às oito da noite, outras, virava a madrugada por causa do fuso-horário das viagens internacionais.

— “Não foi minha capacitação, embora eu tenha me esforçado muito. Foi Deus quem me colocou lá. Ele sempre me surpreende.”

Outro marco em sua história foi na Suécia — um dos momentos mais inesperados e, ao mesmo tempo, mais significativos.

Na época, ela e uma colega muito próxima foram transferidas: Miriam para Moçambique, a amiga para Angola. Tinham vivido muitas coisas juntas, por isso planejavam uma festa de despedida em comum. Mas, de forma dura e silenciosa, a colega se recusou.

— “Ela disse que não queria festa comigo. Não falou diretamente, mas ficou evidente. Tinha vergonha de mim. Fiquei profundamente triste.”

O tempo passou. Miriam foi visitar a filha, Rafaela, na Tailândia. Já tinham visitado a Disney com os netos, ido à Suécia, e agora era a vez daquele país distante e exótico. Ficaram todos juntos num hotel à beira-mar.

Ao retornar, a festa já não aconteceria mais. A oportunidade passou, e o sentimento permaneceu em silêncio. A casa onde estava hospedada já estava quase vazia, malas prontas, clima de despedida no ar. Mas então, inesperadamente, o telefone tocou. Era a secretária do embaixador:

— “Miriam, o embaixador pediu que você passe no gabinete.”

— “Ah, não precisa. Já me despedi...”

— “Mas ele quer fazer isso oficialmente. Vai ficar chato se você não vier.”

Mesmo com roupa simples — um vestido laranja, presente de uma moça na Tailândia —, ela foi. Imaginava que seria uma despedida informal. Mas ao chegar ao local, viu vários militares, todos fardados.

Pensou: “Deve estar tendo alguma reunião oficial.”

Foi levada ao salão de festas. E ao abrir as portas, a surpresa: era uma grande homenagem. A festa era toda para ela. O salão decorado, todos reunidos: o embaixador, funcionários, militares. E o vestido laranja, por coincidência — ou providência —, combinava com toda a decoração.

— “Ali, fui homenageada com uma medalha, por ter colaborado com a adidância militar do Brasil na Suécia. Mesmo sem obrigação formal, ajudei com o processo seletivo, orientei candidatos, organizei tudo. Deus viu. E Ele me honrou.”

Ela nunca esqueceu: o general estava em Londres, a adidância ainda em estruturação. Como não havia militares no país naquele momento, o embaixador apontou:

— “Quem cuida disso aqui é a Miriam.”

E foi o suficiente.

— “Se aquela colega estivesse presente, talvez eu ficasse constrangida. Deus conhece meu coração. Ele sabe que fico envergonhada diante de certas coisas. Por isso, preparou tudo do jeito dEle. No tempo certo, e da forma certa, me honrou diante de todos.”

Uma outra história de um momento bem anterior a todos esses  foi quando Miriam foi transferida para o Uruguai. Vinha da Guiana, onde trabalhava no consulado. Lá, já exercia funções de vice-cônsul — mesmo sendo, oficialmente, assistente de chancelaria.

— “Um dia, o embaixador me chamou e disse: ‘Quero nomeá-la vice-cônsul’. Fiquei surpresa. Aquilo nunca tinha acontecido com alguém da minha função no Uruguai. Foi inédito.”

Antes dela, outra oficial de chancelaria tinha sido considerada para o cargo, mas não pôde assumir. O caminho se abriu, e a confiança veio do alto.

— “Fiquei oito anos nessa função. Era muita responsabilidade, documentos para assinar, plantão consular... aceitei. Mas havia quem não aceitava minha presença.”

O vice-cônsul da época ficou incomodado. Miriam percebeu.

— “Ele disse ao embaixador, na minha frente: ‘Aqui nunca houve isso. Vice-cônsul tem que ser oficial de chancelaria'

Mas o embaixador foi firme: — “A Miriam tem boas referências. Ela sabe trabalhar. Não é trabalho de gabinete, é trabalho de verdade.”

E confirmou sua nomeação.

Mesmo assim, o colega passou a persegui-la.

— “Ele me humilhava. Era como se se alimentasse disso. E eu? Fazia de conta que não percebia.”

Miriam seguiu firme, em silêncio. Com dignidade.

— “Porque o Senhor vê tudo. E no tempo certo, Ele levanta. Ele honra. Ele justifica.”

Ela encerra cada testemunho com a mesma certeza: a honra que vem de Deus é superior a qualquer promoção humana. Ela não precisa ser defendida. Ela se impõe com verdade, no tempo certo, da parte de Deus.

Nem sempre o chamado de Deus se revela de forma clara desde o início. Com Miriam, foi assim. Ela entrou no Itamaraty ainda jovem — com apenas 18 anos, em 1972 — e, seis anos depois, já estava sendo enviada ao exterior. Seu primeiro posto foi na Guiné-Bissau, aos 24 anos.

— “Comecei a trabalhar com 15 anos. E desde essa época, já ajudava em casa. Quando recebi meu primeiro salário aos 18, fui logo abrir um crediário. Mas não era para mim. Comprei roupas e sapatos para mim, para minha irmã mais nova e para meu irmão. Só depois que terminava de pagar, eu comprava algo de novo. Sempre fui assim. Sempre gostei de ajudar.”

Essa generosidade era algo natural. Herdada da mãe e do pai, cresceu sendo ensinada a repartir. Mas com o tempo, ela percebeu que havia mais do que um bom coração: havia uma missão.

Um dos primeiros sinais disso aconteceu ainda em Guiné-Bissau. Lá, uma funcionária local da embaixada — uma mulher africana que trabalhava na casa do embaixador — apareceu à sua porta desesperada. O filho dela estava coberto de feridas. O corpo inteiro tomado.

— “Eu fiquei apavorada. Uma menina de 24 anos, vendo aquilo... Lembrei que tinha uma pomada muito boa, dessas que servem pra tudo, chamada Tetra... alguma coisa. Entreguei a ela e orientei como usar.”

Aos poucos, as feridas começaram a limpar. O menino chorava de dor, mas a infecção foi cedendo. Quando a pomada acabou, a mãe voltou pedindo mais — mas já não havia. Miriam tentou enviar outra do Brasil, mas os tempos eram outros: sem DHL, sem Sedex, sem fronteiras abertas como hoje. A espera era longa. Mesmo assim, quando o novo tubo finalmente chegou, a cura foi completa.

— “O menino ficou são. Deus fez.”

Ela não sabia, mas ali, no início de tudo, já estava vivendo seu chamado: ser instrumento de socorro.

Na Guiné-Bissau, ela também testemunhou o sofrimento da população. A comida era escassa, o arroz era distribuído pelo governo, e longas filas se formavam para buscar uma saca de 50 quilos.

— “Um saco de arroz durava quase um ano pra mim. Mas eu comprava um todo mês, e doava a um funcionário local. Aquilo pra mim era o básico, era o que qualquer pessoa deveria fazer. Mas hoje eu vejo: era o início de tudo.”

Foi só anos mais tarde, no Uruguai — em Montevidéu — que Miriam entendeu, com clareza, o propósito maior de Deus.

— “O Senhor me falou: ‘O Itamaraty é só a ponte. Eu te dei esse lugar para cumprir o Meu propósito.’ E foi aí que meus olhos se abriram. Comecei a perceber as conexões, as oportunidades, as situações... Tudo se encaixava.”

Eram muitas as situações em que Deus a colocava como canal de provisão e resgate. Famílias com filhos no exterior que não tinham recursos para viajar; igrejas carentes, começando do zero, precisando de apoio; missionários sem estrutura básica. E Miriam, com discrição, entrava em cena.

— “Deus começou a me usar de forma muito específica. Eu sabia quando ajudar, como ajudar, e a quem ajudar. E isso não vinha de mim.”

Um pastor no Uruguai, que não a conhecia, confirmou essa chamada. Ele a encontrou em uma igreja distante da capital, onde ela estava apenas como visitante, sentada no fundo.

— “Ele se aproximou e falou: ‘Não sei se você já tem ou vai ter, mas Deus está mostrando que o lugar onde você trabalha é só uma ponte. O propósito é maior.’

E tudo fazia sentido. A partir dali, ela passou a servir com intencionalidade. Recebia missionários em casa, oferecia descanso a pastores esgotados, sustentava igrejas em formação com seus dízimos, e, acima de tudo, carregava uma consciência clara de que seus recursos pertenciam a Deus.

Na Albânia, foi diferente. Lá, o chamado foi itinerante.

— “Não congreguei em uma só igreja. A cada mês, o dízimo ia para um ministério diferente. Missionários brasileiros em lugares diferentes do país. Deus me dizia: ‘Ajude este agora, depois aquele.’ E eu obedecia.”

Ela entendeu, de uma vez por todas, que havia recebido um ministério de socorro e misericórdia. Que o recurso em suas mãos era parte de um propósito. E que o cargo no Itamaraty, por mais nobre que fosse, era só um meio.

— “Teve um tempo em que pensei: ‘Deus não me deu isso pra mim apenas. Eu sei que foi Ele que me colocou no Itamaraty. Eu não tinha capacidade, não estudei o suficiente. Fiz o concurso com 17 anos, sem saber que poderia ser chamada. E eles só começaram a chamar na semana em que completei 18. Se tivessem chamado antes, eu teria perdido a vaga.”

Com os olhos marejados, ela conclui:

— “Foi tudo no tempo de Deus. Ele me deu. E a partir daquele momento, tudo se aquietou dentro de mim. Eu sabia. Essa era a resposta às minhas orações.”

Deus Me Deu. E Me Ensinou a Dar.

E se veio das mãos d’Ele, por que reter? Por que guardar apenas para mim, se posso aliviar a dor de alguém? Não estou me esvaziando por completo — apenas repartindo. Dividindo o que posso, com quem precisa.

Descobri que cada gesto, mesmo os mais simples, carregava o perfume do eterno. Era como erguer um altar silencioso onde fé e prática se encontravam. Porque, para mim, generosidade nunca foi sobre abundância — foi sobre reconhecer que o que tenho já é mais do que o suficiente para compartilhar.

Com o tempo, algo dentro de mim começou a mudar. Deus, com Sua paciência, começou a me entregar não apenas recursos, mas qualificação interior. Um novo entendimento floresceu: administrar com sabedoria, discernir com sensibilidade, agir com prudência.

A prudência, que antes me parecia frieza, agora se revelava como sabedoria disfarçada. Antigamente, eu achava que, se não ajudasse, estava sendo insensível. Se não dissesse sim a todos, eu estava traindo o bem que Deus havia me dado para realizar.

E muitos perceberam isso. Tomaram minha entrega por fraqueza. Pediam — repetida, descaradamente. E eu, sem saber dizer não, me via presa. Empacada. Carregando a culpa. Mas Deus começou a me permitir sentir um tipo de angústia santa. Uma inquietação que me impedia de ceder automaticamente. E eu entendi: não era mais tempo apenas de dar — era tempo de discernir.

Alguns pedidos vinham carregados de desespero, especialmente em países da África. Mas nem toda urgência carrega verdade. E, aos poucos, o Espírito começou a me ensinar: nem todo pedido vem d’Ele.

Comecei a notar os sinais. Toda vez que alguém se aproximava com propostas que traziam peso em vez de paz, meu espírito se agitava. Uma névoa tomava o peito, e eu compreendia: Deus estava fechando o coração. E quando Ele fecha, Ele avisa.

Aprendi a orar antes de qualquer ajuda. Porque o dinheiro não é meu — é d’Ele. E eu sou apenas dispenseira. Quando meus filhos têm necessidades, eu dou. Porque sou mãe. Porque sou serva. Mas às vezes, eles se calam. E sem saber, posso estar tirando deles para dar a quem talvez nem precise tanto assim.

Foi então que compreendi: nem todo “sim” agrada a Deus. Nem todo “não” é dureza. Às vezes, é obediência. Durante anos, eu separava valores com zelo: “Isso posso gastar, isso vou guardar.” Mas bastava alguém precisar para a culpa me assaltar: “Como posso ter guardado, enquanto alguém sofre?”

Eu achava que guardar era egoísmo. Que ajudar era obrigação. Mas Deus me ensinou outro caminho: nem toda generosidade é prudente, e nem todo impulso é espiritual. Com a separação, passei a caminhar sozinha. Sem o suporte de um companheiro, precisei ser ainda mais cuidadosa. Meu marido seguiu a vida, com seus bens, imóveis, estabilidade. Eu segui com Deus — meu provedor. E entendi que guardar não é negar socorro, é se preparar para o momento certo.

Com o que guardei, comprei pequenos apartamentos. Nada luxuoso. Mas cada um com propósito. Um deles, comprei pensando na minha irmã. Estava em meu nome, mas era para ela. Sua casa já não lhe cabia mais — nem em estrutura, nem em dignidade.

Naquele tempo, até cogitei investir em aplicações. Meus colegas falavam: “Começa com pouco. Espalha. Se um cai, o outro segura.” Mas aí fui visitar minha irmã… e a realidade me quebrou por dentro. Não foi piedade. Foi compaixão. Era tempo de acolher, não de multiplicar.

Ela havia parado o tratamento médico. E algo em mim se revoltou, com doçura:

— “Não. Ela não vai parar. Não vamos deixar que desistam. Mesmo com pouco, dá.”

E eu dei. Com temor, mas com paz.

A casa não era grande — valia pouco mais de trezentos mil. Não paguei tudo de uma vez. Estava me reorganizando para a próxima transferência internacional. Tinha comprado um carro financiado, depois de um ano a pé. Reservei dinheiro para quitar mais um ano de financiamento. E ainda tinha que comprar as passagens da Isabela e da Rafaela — porque sempre levo as duas comigo nas viagens, como forma de envolver minha família no meu chamado.

Com o que sobrou, completei a casa. Não foi luxo. Foi obediência. Eu só queria ajudar. Servir a Deus com o que tenho. Mas a cobrança veio. Não da consciência — essa, graças a Deus, está em paz. Mas dos de fora. Da própria família. Sobrinhos que se afastaram porque não atendi seus pedidos. Gente que só aparece para pedir:

— “Tia, empresta 10 mil?”

E eu aprendi: nem todo pedido é necessidade. Nem toda ajuda é socorro.

Não quero viver com dificuldade, mas também não quero sustentar fantasias alheias. Tem gente que ganha mais do que eu e nunca é cobrada. Mas porque trabalho fora, moro em outro país, viajo de avião… acham que tenho obrigação. Acham que servir a Deus é sinônimo de abundância sem luta.

Mas não sabem o preço de amar com discernimento. Essa é minha dor. Minha luta silenciosa. Sempre acreditei que Deus me deu uma oportunidade rara — dessas que Ele não entrega a qualquer um. Gente com três, quatro faculdades… e ainda assim, sem portas abertas como as que Ele me confiou.

Não foi mérito. Foi graça. Um chamado.

A família aplaudia. Admirava. Mas junto com o aplauso, veio o abuso. Não físico, mas emocional, financeiro, espiritual. Como quem olha um poço e acha que nunca vai secar. Fui confundida com uma conta bancária infinita. E ali, nesse amor que queria ser remédio, travaram-se minhas maiores lutas. Lutas com os filhos. Com os que eu mais amava. Com os que criei.

Foi só quando minha irmã — a que hoje descansa com o Senhor — abriu o coração e revelou o que vivia, que eu entendi: Nem todo silêncio é santidade. Nem toda ajuda é honra. Nem toda aprovação é apoio. Mesmo assim, continuo crendo: Deus me deu essa missão. Mas agora sei… ela vem com espada e sabedoria.

A generosidade não é um ato isolado — é um chamado. Um dom espiritual. Um estilo de vida. Ao longo dos anos, desde os tempos de juventude até as experiências em lugares distantes como Singapura, Suécia, Cuba, Guiana Inglesa, Cazaquistão, Guiné-Bissau, Uruguai, Albânia e outros, o ministério do socorro e da misericórdia se revelou como a expressão mais concreta do amor de Deus na prática diária.

Como Paulo ensinou em Atos 20:35: “Mais bem-aventurado é dar do que receber.” Mas dar com sabedoria. Com discernimento. Com oração.

Afinal, o dom da misericórdia precisa caminhar lado a lado com a prudência — senão vira dívida, confusão e desgaste. O verdadeiro socorro é aquele que vem da parte de Deus, no tempo de Deus, com os recursos de Deus.

Que essa história inspire outros a viverem com coragem, humildade e olhos abertos para a necessidade real — a que Deus mesmo aponta. Porque quem serve com amor e discernimento, transforma o mundo à sua volta — um gesto de cada vez.

(Minha adaptação para minha conversa com Miriam Michael, Diplomata brasileira) 

Corações Vazios, Mãos Fechadas: A Raiz Oculta da Insatisfação (L11)

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